19.1.16

o vendedor de ossos

A razão mostra-nos que a obra de Deus não existe. Porém, se existisse, Karenin e Deus seriam antípodas.
Não são mais do que léguas as ruas que atravessamos e teimamos em flutuar em sonhos e aspirações; o comando da vida está sempre ligado. Todos os dias, é este pisar na calçada que nos diz óDeus, tu sabes lá, óDeus vem cá baixo ler Tchekhov enquanto se ouvem os bichos nestas montanhas que estão geladas, pá. Como quando vamos a pôr os pés no mar, sem medo, quando não há separação entre Nós e o mundo, e a noção do tempo perde-se. Esquece. O tempo é invenção, não existe, assim como não existe a morte ou a separação.

Num lugar distante, perto de nenhures, sem tempo, habitavam noventa e três pessoas e um cão. Um desses habitantes era Raskol, o vendedor de ossos.

27.5.14

"O diabo é um título das nossas esperanças. Quanto mais elas são ardentes, mais nelas arde o diabo, sem se consumir, como é próprio do seu espírito. Temei os que muito amam; eles são destinados a cometer os maiores erros. Muito ama o diabo; é esse o seu maior castigo e o que o carrega de cadeias para a eternidade."

"Eugénia e Silvina", de Agustina Bessa-Luís

5.11.13


Chance for me to escape from all I've known
Holding back the tears
'Cause nothing here has grown
I've wasted all my tears
And nothing had the chance to be good
...

24.9.13

the call of Cthulhu

"A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar tudo o que ela contém. Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e não estávamos destinados a chegar longe. As ciências, cada uma a puxar para o seu próprio lado, causaram-nos poucos danos até agora, mas algum dia a junção das peças do conhecimento disperso descortinará visões tão terríveis da realidade e da nossa pavorosa posição dentro dela que só nos restará enlouquecer com a revelação ou fugir da iluminação mortal para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas."

H. P. Lovecraft, in "O chamado de Cthulhu"

17.9.13


Tal como todas as outras noites, entregava-se a esta, sem nada para oferecer. Era um homem de pouca sorte, mas astuto e impecável nas suas afirmações. Existia consoante o tempo, de acordo com as vozes na sua cabeça.  Ainda guardava com ele o livro que a mulher lhe deu no seu aniversário, há sete anos. Na verdade, nunca chegou a lê-lo; não teve a coragem  de o devorar, com medo de ver o rosto dela em cada página. Ela já ali não estava.
Esta noite já não queimou a vela, não fumou o seu cigarro e tão pouco se atirou às palavras, pois não queria entregar-se a nada. Apenas e só; estava dominado pela intempérie e pelos ecos surdos das suas ideias, voláteis e maciças vozinhas. Era o escritor que hoje não queria sê-lo e que simplesmente se limitou ali a existir, a dissecar o silêncio e a sua solidão. Não sobrava mais nada, não havia lugar para a razão ou para o medo. Do lado de lá da sua janela, a paisagem sobrevivia à custa de um roseiral bravo e de duas pequenas macieiras, tudo em sofrido contraste com o seu quarto bafiento, cujas paredes já não testemunhavam qualquer inquietude ou satisfatória alegria.
Deitou-se na cama, ainda com os lençóis por fazer, e apercebeu-se da dor absurda que esta realidade transporta. Nada que ele nunca tivesse pensado antes, apenas nunca o tinha levado para a cama. 

Imagem: O beijo, de Gustav Klimt